quinta-feira, abril 23, 2009

A simplicidade da vida: a morte.




Todos me olhavam. A pressão era muita; não pela intensidade com que me olhavam mas pela expectativa que me lançavam. Respirei fundo, dilatando tanto quanto podia as narinas, de modo a que ninguém percebesse o esforço que iria fazer. E comecei: “Olá a todos. Chamo-me Manuela. Sou professora de ensino secundário. Tenho trinta e quatro anos e sou do Alentejo. Não estou aqui de livre vontade, mas sim, porque o meu psiquiatra insistiu que viesse. Não que tenha alguma coisa contra vocês, que não é o caso, visto que nem vos conheço. Talvez o motivo resida aí… não vos conheço. Sei que estão aqui para desabafar, para ouvir o próximo, para se ajudarem mutuamente, e que um dos vossos princípios é não criticar ninguém mas espero que compreendam todo o meu desconforto.”
No fundo da sala ouviu-se alguém em nome de todos os presentes dizer “Tudo bem Manuela, não a censuramos, todos nós já passamos pela sua situação. Esteja à vontade e quando se sentir preparada partilhe connosco essa mudança.” Acenei com a cabeça e baixei-a de seguida. A voz era de outra mulher e entoava calmamente sobre o meu pouco à vontade. Aparentava os 50 anos e era a orientadora da reunião. Naquele dia não disse mais nada. Limitei-me a ouvir. Continuara assim durante um mês.
(…) O tempo passou. E novas histórias foram contadas. Novas pessoas foram aparecendo, outras desistiram, eu sem remédio continuava a ir. Durante um mês e meio sei que fui injusta ao não me pronunciar. Sei que os que já me conhecem já não fazem caso, mas os novos que iam aparecendo, questionavam o porquê da volta terminar e eu nunca me pronunciar. Não era bem vista. (…)
– Algo mudou em mim. Sinto-o. Hoje na reunião quando ouvia uma mãe desesperada a falar sobre as dificuldades que tinha ao tentar manter a sua vida inextinguível para que o seu filho tivesse uma vida feliz, algo me tocou. Pensei em mim, pensei na minha filha, e queria pensar em voz alta para todos ouvirem o que era a verdadeira dor; mas não fui capaz. Guardei novamente para mim toda a loucura que me possuía. Ouvia a voz do meu coração agitado paralela à voz entorpecida da aflita mãe. Pensava em mim e mais uma vez na minha filha. Pensava no nosso futuro. No futuro que lhe reservaria.
– E que futuro seria esse? – perguntou o meu psiquiatra tentando avaliar todo o distanciamento da minha expressão.
Quando aceitei a sua ajuda jurara-lhe que nunca, por mais moribundo que fosse o meu pensamento, o omitia.
– O descanso perpétuo a meu lado. – a sua expressão foi dura mas sentia-me pronta a perseguir o meu raciocínio. Ele não me travou esse prazer.
– Não faço cá nada. Estou cá unicamente pelo amor que tenho pela Clara. É ela o motivo de tudo. O motivo porque ainda me arrasto e luto contra tudo e todos. E sem ela não posso partir. Será mais fácil assim. – Concluí.
– Esse amor não é suficiente para querer que a sua filha tenha uma vida feliz? – perguntou-me de forma calma.
– A Clara só irá ser feliz comigo por perto. Sem mim a Clara irá sofrer muito e não quero que isso aconteça. A Clara precisa de mim.
– A Clara precisa de si viva. A Clara há-de querer viver e ter a sua vida, não acha?
– Eu ficaria o ser mais feliz se soubesse que isso se passaria assim. Mas ela é uma criança e eu sinto que não consigo ter forças durante muito tempo. Não a consigo proteger toda a vida, por muito que queira. E sem mim nunca há-de ser feliz e eu não vou permitir que isso aconteça, tal como aconteceu comigo. Para onde quer que eu vá, levo-a comigo! Ela faz parte de mim! Fui eu quem a teve durante 8 meses, duas semanas e três dias no ventre. Fui eu que esperei e senti as dores durante um dia inteiro para a ter! Fui eu… – contive-me. A sua expressão não mudara durante estes 40 segundos e por isso prossegui. – Você não percebe. Se calhar numa teve filhos, desilusões, ou outro tipo de torturas ao longo da vida. Mas eu durante toda a minha vida sofri e nunca tive qualquer tipo de amor. Ninguém verdadeiro, ninguém amigo, ninguém que me pudesse ouvir ou abraçar. Ninguém que me desse os parabéns ou que perguntasse se estava bem quando ia parar ao hospital. Ninguém que me fosse buscar… Você conhece a minha história, não preciso de lhe recontar vezes sem conta. Sinto-me fraca só de o pensar… Há muito tempo que estou morta por dentro, que finjo um sorriso, que finjo um trabalho, que finjo ter uma vida. Sinto-me sem forças e a cada momento penso mais na minha filha. Quero-a comigo! É o meu eterno consolo.
– Eu percebo-a, mas não posso deixar que faça isso. Muito menos sabendo que vai pôr em risco outra pessoa, nomeadamente a sua própria filha que ainda não atingiu sequer a adolescência. – fitou-me com um ar rígido.
– Eu também o percebo, mas não há nada que possa fazer. É uma decisão minha. É um futuro que prevejo e não pense que me é fácil… – chorei…
– Eu apenas pretendo que desista da sua ideia. Que siga por outro caminho e me deixe ajudá-la. Que confie em mim e nas minhas capacidades. Que dê uma oportunidade a si própria e infinitas à sua filha. Acha que pode fazer isso?
– Vou tentar… – apenas me surgiu dizer aquilo. O rumo dos meus desabafos tinha ido para além do que alguma vez desejara. Metia a culpa naquelas reuniões estúpidas a que fora submetida. Eu sabia que não deveria ter ido. Mas como? Estava presa a uma ajuda à qual eu própria tinha apelado. Sentia-me a mentir, sentia que lhe estava a mentir ao mesmo tempo que tentava convencer-me do contrário. Na minha mente fui sincera mas no meu coração tudo tinha ficado igual. A confiança que pretendia da sua parte foi restabelecida. Precisaria dela para que não interferisse no futuro que eu tão bem conhecia. (…)
Amo-te Clara, foi para o teu bem e da mamã.
«Foto de Sérgio Bettencourt.»