quarta-feira, setembro 28, 2011

A minha primeira flor


Tinha seis anos quando a minha mãe me apresentou à minha primeira e única flor. Recordo-me tão bem… que as palavras me fogem para a descrever. Assim muito simples, posso dizer que era uma orquídea de um azul muito brilhante, diria mesmo que saudável ou mesmo um azul de felicidade. Era uma flor vistosa!

Quando a minha mãe me chamou para perto de si percebi pelo tom que se tratava de algo importante. E por sinal era! Era uma lição, um ensinamento que deveria enriquecer a criança que era na época mas tornou-se muito mais do que isso. 

Cheguei perto de ambas e disse – “O que é mamã?” – e ela respondeu-me carinhosamente – “Esta é a flor mais querida da mãe e é para ti”. Naquele momento não percebi a intenção porque o que via era apenas uma flor e não passava disso, de uma flor. Apesar da confusão sorri e acenei com a cabeça.

Senti que aquele instante se estava a prolongar e estava perdida porque não sabia o que havia de fazer com a flor preferida da mamã. A verdade é que uma grande angustia, por poder vir a desapontá-la, corrompeu o meu pequeno ser. Era mais fácil quando me dava bonecas, já sabia o que fazer. A mamã ficava sempre contente ao ver-me brincar com elas, recordo.

Aquela frágil flor tornara-se na minha maior responsabilidade e eu nada sabia sobre como a havia de tratar. Com seis anos queria brincar, correr, subir árvores e até casas mas não queria ter uma flor para cuidar. 

Aos poucos fui aprendendo como se cultivava, regava, qual a melhor luz, o melhor local, mas nunca consegui fazer como a mamã e isso moía-me. Não sabia ter as mesma conversas que a mãe tinha com ela, muito menos sorrir-lhe ou namora-la. Era estranho e sinta-me estranha por não saber reproduzir na perfeição o que via a minha mãe fazer.

Com o tempo deixou-me de me relembrar de cuidar dela e foi deixando com que eu gerisse o tempo. Foi difícil lembrar-me, preferi-la às minhas brincadeiras e, sobretudo, nutri-la com o meu amor de criança.

Os meses foram passando e escusado será dizer que a flor preferida da mamã não durou muito nas minhas mãos. Apesar de me ter dito que estava tudo bem e que não fazia mal eu senti-me triste por ter falhado.  

De facto nunca percebi que precisava da um tratamento especial e apenas seria totalmente minha se a trata-se assim. Precisava que me entregasse e que lutasse diariamente pela sua beleza, pela sua saúde e pela sua presença na minha vida. Era uma entrega simples mas rigorosa que subestimei e não fui capaz.

Passados uns bons anos dou significado àqueles curtos meses. Aprendi que não era um objecto e não podia facilmente abandoná-la e esquecer-me ou lembrar-me quando quisesse. Tomei-a erradamente como minha, tal como um legado concretizado pela minha progenitora. Foi errado bem sei, mas hoje sei! 

Mas ainda há algo que gostaria de saber: Mãe sacrificaste a tua melhor flor para me ensinar tudo isto ou falhei mesmo à primeira?

segunda-feira, julho 04, 2011

Pânico, caos, dor e exterminação.


Nos últimos dias as igrejas têm estado lotadas. Apavoradas, famílias inteiras carregam nos braços novas gerações que poderão nunca vingar. O que há de pior no mundo revelou-se e o povo, até há pouco descrente, bate até que os punhos ensanguentados rompam os portões do culto.


Chegou a Era do Apocalipse, a Era onde todos têm o mesmo valor. A Era em que a humanidade vale menos que as cinzas e a crueldade conquista de rompante o que há muitos milénios lhe foi tomado. 

Nunca as religiões tiveram tantos devotos. 


A sobrevivência é um suplício: o povo que quer viver e morrer santo, ajoelha-se perante Deus e reza de estômago vazio ao som da morte alheia. No interior do santuário ecoam os gritos dos irmãos que apelam pela salvação divina. 

Encurralado nos portais da sua existência há muito que Deus não sofria desta forma. 


Os ancestrais avizinham anos de escuridão onde o Homem, pela primeira vez, não se esconde de si próprio. 

Chegou a adoração forçada pelo medo gravado em canto da mente. A alma é somente entregue à devoção. 

O Homem nunca desejou tanto a ignorância.

segunda-feira, abril 18, 2011

Hora para balanço

Passaram-se sete anos… Sete anos vivendo nas sombras pela espera da perfeição. Sete anos esperando o milagre do dom de escrever que nunca veio porque era esperado. Sete anos sem apostar nas pequenas coisas que poderiam torna-se grandes. Foram anos que pareceram meros dias porque olhei para eles como dias. E mais uma vez o tempo passa, porque o deixámos passar. Fiquei de olho no dia em que me apeteceria escrever continuamente… mas esse dia não veio. Vieram dias individuais em que frases gordas saiam da minha mente sem sequer eu ter tempo de as escrever. Vieram outras… que pensei em melhorar mas que mais tarde esqueci. E assim foi passando o tempo, sem que eu o notasse a escapar. Talvez porque na minha cabeça, naquele momento, nada era tempo mas, sim, frases a vaguear.
Sete? Misticamente interessante, não?

domingo, março 06, 2011

Uma flor chamada Jasmim - Parte I

Desde pequena que aquela criança era chamada de diferente. Segundo os seus pais era uma criança mais difícil do que as outras e, por isso, rotularam-na facilmente como problemática. Envolvida nos rótulos e conclusões não fundamentadas foi crescendo, dizendo a si mesma que não era igual às outras meninas e que nunca seria como elas porque, simplesmente, era complicada, fosse lá isso o que fosse. O seu nome era Jasmim, simpaticamente conhecida como Jás. 
O nome foi inspirado na flor do jasmim-estrela, uma flor lindíssima com pétalas suaves que lembram uma cintilante estrela. Era dessa forma, que Helena e Gabriel, os pais, sonhavam que Jás fosse: lindíssima, suave e cintilante. Mas isso ficou muito longe de se tornar verdade.
Sem sombra de dúvida Jasmim tinha um carácter forte e muito individual. Com o tempo foi sentindo-se cada vez mais desenquadrada do mundo perfeito onde vivia. Sentia que aquele mundo não era  tão fantástico como lhe diziam, mas sim falso e gelado.
Quem a conheceu, se voltar atrás no tempo memorizado e avaliar as suas acções, sabe que ela tentou aproximar-se dos padrões que lhe vendiam. Diria, que se esforçou como uma criança se sabe esforçar. Tentou que a notassem e a ajudassem a perceber quem era de verdade, mas isso nunca aconteceu. E foi assim que começou a ficar invisível perante todos e perante si mesma.
Rapidamente os dias começaram a ser só mais dias… começaram a não ter significado, ou pelo menos ela assim o quis. A pouco e pouco temporalmente, mas rapidamente na sua cabeça, tudo começou a ficar insuportável. Não havia limites para a sua tristeza e descontentamento.
Apesar da vida que levava, Jasmim não parou de crescer e, muito antes que todos reparassem, tornou-se numa linda adolescente cada vez mais próxima da maioridade. Infelizmente, não teve ninguém ao seu lado que a compreendesse e isso tornou-a indiferente à vida que levava.
Sozinha, Jasmim planeou romper com a vida emoldurada; e procurou uma que fosse solta de todas as obrigações e refeições mudas que tinha à mesa com os pais. Faltava apenas o dia, o momento, a deixa ideal para pôr um fim e começar uma nova etapa.
No dia em que comemorava o décimo sexto aniversário, foi explicitamente avisada pelos pais de como teria de se comportar, o que havia de dizer e como se vestir. Tudo era planeado ao minucioso pormenor, mas normalmente tudo saía diferente quando se tratava de Jás.
Durante toda a festa, sentia-se uma autentica marioneta, querendo por um dia ser a filha perfeita que nunca tinha sido, mas mais uma vez isso não aconteceu.
Quanto todos os convidados se foram embora, os pais tiraram a máscara e mostraram o que realmente sentiam.  Para Helena e Gabriel, Jasmim estava demasiado estridente e isso não era bem visto pela sociedade vizinha. O que iriam pensar os vizinhos e amigos da família? Nada de bom certamente. Sem sombra de dúvida a flor com que tanto sonharam tinha virado uma erva daninha.
Foi com dezasseis anos e no dia do seu aniversário que Jasmim se despediu unicamente do seu quarto e levou consigo algum dinheiro, algumas roupas e o seu ursinho Margô, para que juntos começassem uma nova vida.

Uma flor chamada Jasmim - Parte II

Jasmim é uma mulher com 26 anos e segundo a mesma “conhece a vida melhor do que muitas mulheres”. Saiu de casa muito jovem, por vontade própria, e foi fora de casa que aprendeu “a viver à sua maneira, a ganhar o seu dinheiro, a conquistar um lugar no mundo, fosse ele qual fosse”.

Jasmim, decidiu sair de casa com que idade? “Quando saí de casa tinha 16 anos. Quer dizer não saí propriamente de casa… eu fugi de casa e nunca mais voltei. Fiz-me à vida, procurei viver à minha maneira e isso levou-me a sítios e a pessoas que, naquela altura, nunca imaginei que existissem.”
Qual o motivo para ter fugido de casa? “A minha casa era um sonho, parecia de bonecas, mas eu não sentia que pertencia ali. Parecia que tinha sido arrancada dos meus pais verdadeiros e colocada num conto de fadas, mas há noite acordava e  tudo virava um pesadelo! Tudo era planeado, tudo tinha de ser rigoroso, eu não podia ser eu, não podia ser espontânea. Escondi-me de mim e de todos até aos meus 16 anos.”
Quando fugiu para onde foi? “Planeie por algum tempo onde iria… mas quando o dia chegou… fiquei depressa sem norte. Cheguei a ir a sítios que tinha planeado mas nunca podia ficar por muito tempo, porque não era a minha casa. A verdade foi que o dinheiro começou a ser cada vez menos e sem me aperceber fui traçando outra vida.”
Porque não voltou para casa dos seus pais? “Ao princípio, quando me senti realmente sozinha e não tinha mais para onde ir, pensei e quis muito voltar a entrar em casa e sentir o seu cheiro… mas não consegui. Naquela altura a ideia de que me iriam repreender para o resto da minha vida era a  pior coisa que me poderia acontecer.”
Como conseguiu sobreviver sem a ajuda dos seus pais? “Bem… ao princípio foi muito complicado. Fiquei na rua durante alguns dias, ia sobrevivendo das esmolas que me davam. Na segunda semana uma mulher mais velha passou por mim e ficou a admirar-me, passado algum tempo ofereceu-me comida e um tecto com a condição de eu lhe pagar o que devia quando fizesse os 18 anos. Estava tão desesperada que aceitei logo!”
Até completar os 18 anos o que aconteceu? “Foi muito estranho. A senhora que me tirou da rua era , e é, dona de um bordel. Só me apercebi disso semanas mais tarde. Era ingénua e não compreendia o porquê do movimento de homens que havia. Pensando bem, quando soube da verdade só tive medo que me expulsassem de lá. Em pouco tempo, fui-me tornando a mascote das raparigas e sentia que todas gostavam realmente muito de mim. Todas diziam que era linda, uma verdadeira boneca. Os homens, esses, ficavam doidos quando me viam, mas a Srª Mercê nunca deixou que nenhum me tocasse. Ela era, e é, muito fiel ao regulamento do estabelecimento.”
A partir dos 18 anos o que mudou? “Nada e tudo. Eu sabia que tinha uma dívida muito grande para com a Mercê, e sabia que tinha de pagá-la. Apesar dela não me ter dito o como, eu suspeitava, mas nunca fugi desse pensamento. A verdade foi porque, nesses dois anos, criei ligações muito fortes com a Mercê e com as outras bonecas. Eu era uma boneca especial, tornei-me na filha que nunca teve e vejo as outras raparigas-mulheres como minhas irmãs.”
Orgulha-se da vida que teve? “Não e sim. Não, porque fiz muita coisa errada da qual me arrependo. Se fosse agora não o voltaria a fazer. Houve coisas que nunca me explicaram e tive de aprender à minha custa. E, sim porque nunca voltei atrás na minha decisão por pior que fosse o momento pelo que estava a passar. Isso deixou-me mais forte. Mas mesmo assim, não é esta vida, que uma criança de 16 anos quer, quando foge de casa à procura da sua verdadeira identidade.” 
Se voltasse a ter uma segunda oportunidade, o que faria de diferente? "Hum... Teria levado mais dinheiro!!! (Risos) Bem...teria explicado aos meus pais como me sentia e marcado a minha posição naquele mundo. Talvez só mais tarde acabaria aqui e tudo teria mais sentido."
Para concluir Jasmim: Há algo queira acrescentar à sua história de vida? “Sim... No fundo, sempre soube e sempre quis dizer aos meus pais que eles tinham razão: eu era uma criança diferente. Sou um Jasmim Negro, uma flor rara."